quinta-feira, 16 de abril de 2020

Memorial

Nos últimos dias tenho estado muito nostálgica (será que eu vou morrer?) e tenho sido presenteada pela falha memória por lembranças profundas. Profundas no sentido de intensas, cheias de sentimentos. Por vezes são meros detalhes, situações aparentemente sem grande importância, mas que me tomam, cheias de símbolos. Estes dias lembrei de quando mudamos, meus pais, meu irmão e eu para nosso apartamento num condomínio desses enormes, cheios de prédios, lá em Candeias. Lembro de cada metro quadrado do apartamento (que na minha memória parecia bem maior do que é de fato), da brisa do mar (que não dava pra ver, na verdade era bem distante), dos sábados em que meu pai embalava as nossas manhãs com Chico ou Vinícius na sua radiola Philips (que nesse tempo, além do vinil já era apta para tocar cd, além de rádio e fita). Esses dias li um conto de Lucia Berlin que custo recordar, mas que dizia assim "uma casa cheirando a sopa as seis da noite é um lar" e de imediato recordei as mãos de minha mãe e a forma como ela cortava cenouras, batatas e chuchus, diante da televisão antes de colocar a sopa no fogo, e da forma como esse cheiro quando incensa minha casa hoje me retoma sua imagem como se fosse um abraço. Não admito que me digam que sopa não é janta. Outro dia enquanto cortava mamão revivi o modo que ela me sentava na soleira da porta que dava para o quintal e me apresentava um prato com mamão cortadinho com açúcar por cima, e de que talvez essa seja a memória infantil mais doce que tenha  guardado dos primeiros anos de vida. Mergulhei também no frio que senti na barriga quando meu pai me levou pra fazer um teste no Colégio Atual, eu ia cursar terceira série do ensino fundamental e já conseguia ser terrível em matemática. Mas fui admitida, com ressalvas em exatas, para estudar no colégio que seria o meu lugar no mundo durante muitos anos. Dali, eu guardo muitas memórias e trago até hoje as melhores amigas -irmãs que alguém poderia ter. De repente, pequenas recordações e gestos tornaram-se verdadeiras jóias e eu gostaria de guardá-las, como num baú, e lamento ter demorado tanto tempo pra começar a escrever um diário. Recordar não é só viver: é tomar as rédeas do tempo, é transpassá-lo.

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