terça-feira, 27 de julho de 2010

Diluir e partir.

Mato seco, teto enxuto, terra árida, chão partido. Olhos secos, rosto enxuto, pele árida, coração intacto. Era assim onde Lia fazia sua morada. Onde o sol desperta mais cedo e o céu é bem mais bordado de estrelas. A poeira é parte que integra a rotina.
Mais à frente, já bem perto da sua casa, havia uma rocha gigante, dessas bem grandes mesmo que não se vê em qualquer lugar, parecia mais uma rocha cuspida de outro plano dentro do universo. A rocha gigante, a preferida de Lia, era pra ela homem. Desde criança ela a chamava de Rocha Vladimir. Rocha Vladimir ficava num dos pontos de mais altitude de onde Lia morava, e tinha um formato geograficamente divino e maravilhoso. Vladimir acumulava água das chuvas, virando um imenso e lindo lago aos olhos dela, e as águas...águas sempre encherem os olhos de Lia: com alegria, quando chovia, e de dor quando perdiam-se pelo caminho. Muito impressionada ela ficou quando ouviu os mais velhos comentarem sobre o homem ter ‘pisado na lua’, e achou uma inutilidade sem tamanho quando todos foram até a casa do prefeito assistir tal cena na TV. Na sua cabeça, era tão claro que não só o homem pisou, quanto habita, não só a lua, quanto o universo em sua forma plena.
Não tarde, e Lia, já mulher, terráquea que era, ou é, ou será, ou nunca foi....somos? enfim, não tardou para que Lia viesse a ter suas primeiras experiências extraterrenas por assim dizer, e tudo tinha a ver com Vladimir. Sempre que passava próxima a rocha tinha sensações extremamente diferentes, sentia uma espécie de calor na nuca, olhos, orelhas, suas mãos pareciam carregar duas bolas de fogo. Tentava ignorar tais sensações e continuava a caminhar. Suas tias diziam ‘menina, isso é coisa do demo!’.
Tempos depois, num dia de muito calor, Lia passando novamente junto à rocha, mais uma vez em meio a essa obscura sensação, começou a ventar sopros fortes em suas pestanas, e com isso, não resistindo, caminhou até Vladimir, e sentou-se contemplando aquele verdadeiro espelho d’água. Em volta, toda ramagem era flamejante, o sol desbotava sua luz nas plantas outrora verdes, agora não, agora tudo é de um tom alaranjado cruel. Ficava pensando: ‘como é que a terra é redonda e a gente não cai? como a água fica ali quietinha? sem escorrer?’ Lhe disseram que era a tal da lei da gravidade, a gravidez cujo feto é o ser humano. Mas Lia nunca compreendeu muito bem isso. Sentada na rocha, gostava de olhar pro céu levantando e descendo devargazinho os olhos, invertendo a visão: vendo o céu na água e a água no céu, até ficar sem saber onde era céu e onde era chão. Um verdadeiro espelho cristalino. Sentia algo de muito magnético naquela pedra e quando cheia d’água... era mais ainda...era como uma espécie de destino implacável que unisse Lia à Vladimir, e ela não podia fugir disso.
Muitas trocas intensas ocorreram em poucos intervalos de tempo. Intensas trocas magnéticas até a linha que limita a matéria. Nisso, Lia conhece Ernesto. Um moço lindo, inteligente, adorava ler poesias na janela de sua amada...perfeito?? O único problema é que Ernesto era uma rapaz muito realista, e olhe que eu nem vou discutir aqui que realidade é questão de ponto de vista porque eu já me permiti muita prolixidade. Em conseqüência, sempre que Lia sentia um embaraço com toda essa história da rocha e de suas experiências em meio aos limites da matéria, ele se colocava muito cético, chegando o dia em que cansou e disse: ‘minha filha, você é louca’ e foi-se. Assim aconteceu sucessivamente com todos os seus namorados, todos a taxavam por ‘Lia, a louca da pedra’. A cidade INTEIRA a via com péssimos olhos. O prefeito chegou a declarar que iria triturar Vladimir e transformar em paralelepípedo, coisa que ela nem sabia o que era. Pois ela foi até a casa dele, e disse: ‘se fizer isso, te quebro a cabeça ao meio’. E ficou por isso mesmo, porque ‘com doido não se brinca’.
Numa noite fria, Lia acordou-se de madrugada com o vento que abrira sua janela, sacudindo bem forte a cortina, voltando a sentir aquele calor na nuca, mãos e orelhas. Não conseguiu mais dormir, nem fechar a janela por não poder conter a força do vento. A plantação toda estava em diagonal, até as nuvens o sopro do vento botou pra correr. Parecia até que o céu ia se abrir. Pulou sua janela e quase planando, chegou até a rocha para mais uma intensa troca de carmas positivos. Suas irmãs sonhavam em casar e ter filhos. Lia a louca de pedra que era, buscava o além-mundo, ela era o além-mundo.
Deitou-se sobre a rocha, seu vestidinho florido, pés delicados pousados em repouso, exalando um aroma indescritível. A água da pedra estava secando, e a madrugada fria ia dando espaço pro sol partir o solo. Um processo sereno, inerte, que fez viável sua partida. Desmaterializou-se Lia, desmaterializou-se a rocha, e a antena parabólica do prefeito. Lia nunca contestou seu destino de unir-se a Vladimir, buscava a plenitude da entrega além da sua existência terrena. Deitada, olhos fechados, cabelos em meio a frieza do sereno da madrugada...e o calor dissolvendo gradativamente...primeiro cabelos, pêlos, pele, poros, e alma. Ficando de Lia apenas o algodão do seu vestido.

domingo, 25 de julho de 2010

Aparecida.

Aparecida, aparição
apareceste enfim
a amparar-me então.
Surgistes feito sombra ao sol:
insistente, efêmera,
insistentemente efêmera.
Maria Aparecida
em minha vida
és perfeita devoção:
devaneio, aparição.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

78 rotações.

De embreagar-te a minhalma.
Todos os poros abrem-se e eu antes do encontro, matéria, sou diluída na luz do que és ao lado meu. Parte minha partida por encarnar, voltemos juntos ao que fomos outrora: meteoro cosmopolita. Planar juntos sobre o universo, nosso destino, meu doce insano talante.