sexta-feira, 22 de maio de 2020

Dia 3:Cansar a paisagem

#3 

Quando tudo é impermanência
permanente é a paisagem
e ainda assim transitória
do tempo que se permite demora
e da teia que visita a vista 
permaneça na paisagem
que se permite cansar
mora na janela ilusória
repara que tua imutável tela
reinventa movimento todo dia
pois permanente é a paisagem
e o cansaço dos teus olhos
ávidos de pousar
noutras íris novos tons
e que dentro da própria inconstância
de exata provisória e permanente
só lhe a resta a mudança.



Fotos: Mariana Souto

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Dia 2: Elevar a compreensão

#2 

Sábia é
saber ser 
contrariada
sabe quem
concorda com a discórdia
e se permite duvidar
saber andar 
na finura de uma linha
entre pés que anunciam
novo caminho 
o do meio que nos leva
ao sagrado encontro 
da elevada compreensão
de quem respira do mergulho
há muito submerso
de que cada imaginação
é um novo mundo
que silenciar
é a suspensão 
intervalo entre egoísmos
mergulha no teu íntimo
entre ser e existir
pois na guerra entre o certo e errado
sábio é não saber
e escutar é melhor que ouvir.

Foto: Mariana Souto
Foto: Mariana Souto

               

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Dia 1: Sobre o mar

#1


Um cheirogosto de mar
deitou-se em minha cama
e o aroma das manhãs
inundou o entardecer
vermelha é a cortina que dança
cujo destino é o vento
enquanto a brisa morna
desfaz num sopro
toda pressa
impermanência
e agonia
voaram as folhas
do outono
e as gregorianas 
que contrariam os dias
o ponteiro rodopiou
parafusou
e o dia engolindo a noite
eclipsou.



Foto: Mariana Souto

Foto: Mariana Souto



quarta-feira, 6 de maio de 2020

Post Scriptum

Eu perdi o medo de morrer
depois que o céu desabou
bem nas costas 
do meu país
e a vida
do jeito que sempre fora
- linear e impermanente -
foi-se esvaindo
feito areia
que se despe da peneira
assim como tuas mãos
quando não podem me alcançar
veja bem, 
não é exatamente coragem
é tão somente não temer
feito carne no balcão frio
que mesmo sem vida
leva incessantes marteladas
eu perdi o medo de morrer
quando perdi o medo
de me encantar.

Azuis

A insistente alegria
de quem encontra filhotes de jabuti
no quintal
em meio ao caos
morte
e tanta dor
a natureza permanece
serena e
esborrando
amor

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Que você possa esquecer

Meu coração flutua entorpecido. Melissa e Valeriana são uma combinação explosiva, só que ao contrário. Qual é mesmo o contrário de explosiva? Talvez não exista contrário, e que ímpar é uma palavra que não permite ser contrariada. Meu coração está morno feito o chá, em suspensão. Condensado. Não tenho medo, não me sinto ansiosa. A capa dura do meu caderno azul que uso como um diário diz "Pequenas anotações para grandes sonhos" em inglês. O que não faz sentido, já que eu não falo nada de inglês. O interessante é a ironia das coisas. Planos num caderno azul de capa dura. Dos planos não restaram nada além das expectativas frustradas. O duro da capa permanece. Mas o azul também se encontra entre as frestas. Hoje eu ouvi uma sirene de um carro da polícia e achei engraçado, havia esquecido das viaturas e da polícia. Privilégio para poucos. Na verdade, da poesia e da expansão do terceiro olho em tempos epidêmicos podemos concluir que há algum avanço se você parar pra fazer um recorte minucioso e bem egoísta. Individual. Íntimo. As manhãs são feitas de  filetes iluminados e o sol vem pra aquecer feito num abraço, pra queimar e despir, pra lembrar que existe vida. As borboletas festejam serelepes e os pássaros parecem cantar mais e mais alto. Acho até que zombam da nossa cara. Eu zombaria. É polén pra lá e pra cá, o verdume das folhas que estão cada vez mais firmes e grossas está cada vez mais intenso. Mas eu ia falar do pão. Do café e do pão de que são feitas as manhãs. Do trigo que adormece massa e amanhece dourado. Do café torrado e moído que bóia na xícara. A brisa da manhã é feita para poesia. Não há nada mais apropriado para o seu feitio. Eu te desejo todos os dias que nunca te falte o pão, o café e a poesia. E que você possa esquecer as sirenes.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Memorial

Nos últimos dias tenho estado muito nostálgica (será que eu vou morrer?) e tenho sido presenteada pela falha memória por lembranças profundas. Profundas no sentido de intensas, cheias de sentimentos. Por vezes são meros detalhes, situações aparentemente sem grande importância, mas que me tomam, cheias de símbolos. Estes dias lembrei de quando mudamos, meus pais, meu irmão e eu para nosso apartamento num condomínio desses enormes, cheios de prédios, lá em Candeias. Lembro de cada metro quadrado do apartamento (que na minha memória parecia bem maior do que é de fato), da brisa do mar (que não dava pra ver, na verdade era bem distante), dos sábados em que meu pai embalava as nossas manhãs com Chico ou Vinícius na sua radiola Philips (que nesse tempo, além do vinil já era apta para tocar cd, além de rádio e fita). Esses dias li um conto de Lucia Berlin que custo recordar, mas que dizia assim "uma casa cheirando a sopa as seis da noite é um lar" e de imediato recordei as mãos de minha mãe e a forma como ela cortava cenouras, batatas e chuchus, diante da televisão antes de colocar a sopa no fogo, e da forma como esse cheiro quando incensa minha casa hoje me retoma sua imagem como se fosse um abraço. Não admito que me digam que sopa não é janta. Outro dia enquanto cortava mamão revivi o modo que ela me sentava na soleira da porta que dava para o quintal e me apresentava um prato com mamão cortadinho com açúcar por cima, e de que talvez essa seja a memória infantil mais doce que tenha  guardado dos primeiros anos de vida. Mergulhei também no frio que senti na barriga quando meu pai me levou pra fazer um teste no Colégio Atual, eu ia cursar terceira série do ensino fundamental e já conseguia ser terrível em matemática. Mas fui admitida, com ressalvas em exatas, para estudar no colégio que seria o meu lugar no mundo durante muitos anos. Dali, eu guardo muitas memórias e trago até hoje as melhores amigas -irmãs que alguém poderia ter. De repente, pequenas recordações e gestos tornaram-se verdadeiras jóias e eu gostaria de guardá-las, como num baú, e lamento ter demorado tanto tempo pra começar a escrever um diário. Recordar não é só viver: é tomar as rédeas do tempo, é transpassá-lo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

como o lençol te despe o dia


descubra-me 
como o lençol te despe o dia
cubra-me 
do teu vapor como se fosse pele minha
os raios rasgando a neblina
bordando de luz
o fulgor que escorre
entre pernas e pelos
arrepiando o próprio sol
de seu flamejar
em minúcias e espaços de tempo
sopros e brisas
versos e ancas
beija-me os olhos
como quem lambe o pisar delicado
das pontas dos pés
desse samba em meu peito.



Patti Smith & Robert Mapplethorpe - Reprodução














segunda-feira, 30 de março de 2020

Pavão misterioso

Tenho refletido muito nos últimos meses sobre o que nos move a escrever. Na verdade, ando pensando no viés da arte de uma maneira geral. A ideia que se faz dos que dela vivem e para ela vivem é ainda muito limitante e arcaica. Sua necessidade, seu real valor, ainda são pouco fundidos aos nossos pensamentos de bichos capitalistas.

Mas hoje, em março de 2020 o mundo vive uma pandemia. O mundo inteiro está parado (de acordo com a ótica do capital) enquanto tenta se proteger de um vírus avassalador, que passou a ditar as regras no dito planeta água.

Eu digo que é de acordo com a ótica do capital porque fábricas e comércios estão parados, mas as pessoas não. Seja nos privilégios dos seus aconchegos, seja nos ônibus lotados em direção ao trabalho - posto que nem todos podem parar - a vida está acontecendo. Nos é apresentada a oportunidade de mexer os dias em direção a um novo movimento para  a própria vida.

Nestes tempos a necessidade da arte - para quem precisa dela para a expressão ou contemplação diante do caos - fica mais evidente. Me questiono sobre o motivo pelo qual escrever e tornar público importa, ou não importa? Tenho em mente que escrever com o intuito do imediatismo de jogar no mundo não é o caminho, mas pode ser também. No fim das contas, enquanto parece que todo mundo escreve e publica, muita gente não escreve e ou não publica, e como testemunhas e atores do nosso tempo, temos um compromisso. A arte como compromisso pessoal e social. 

O blog sempre foi um lugar acolhedor. Um pouco escondido, um pouco exposto, um pavão misterioso - que querendo sabe se expor e ser formoso. Depois de idas e vindas e diante de tudo que tem colapsado e renascido, estou de volta a este virtual lar. Parece besteira mas me reconectar com este espaço me faz caminhar ao reencontro com meu olhar sob mim mesma. Sigamos<3 p="">