quinta-feira, 30 de abril de 2020

Que você possa esquecer

Meu coração flutua entorpecido. Melissa e Valeriana são uma combinação explosiva, só que ao contrário. Qual é mesmo o contrário de explosiva? Talvez não exista contrário, e que ímpar é uma palavra que não permite ser contrariada. Meu coração está morno feito o chá, em suspensão. Condensado. Não tenho medo, não me sinto ansiosa. A capa dura do meu caderno azul que uso como um diário diz "Pequenas anotações para grandes sonhos" em inglês. O que não faz sentido, já que eu não falo nada de inglês. O interessante é a ironia das coisas. Planos num caderno azul de capa dura. Dos planos não restaram nada além das expectativas frustradas. O duro da capa permanece. Mas o azul também se encontra entre as frestas. Hoje eu ouvi uma sirene de um carro da polícia e achei engraçado, havia esquecido das viaturas e da polícia. Privilégio para poucos. Na verdade, da poesia e da expansão do terceiro olho em tempos epidêmicos podemos concluir que há algum avanço se você parar pra fazer um recorte minucioso e bem egoísta. Individual. Íntimo. As manhãs são feitas de  filetes iluminados e o sol vem pra aquecer feito num abraço, pra queimar e despir, pra lembrar que existe vida. As borboletas festejam serelepes e os pássaros parecem cantar mais e mais alto. Acho até que zombam da nossa cara. Eu zombaria. É polén pra lá e pra cá, o verdume das folhas que estão cada vez mais firmes e grossas está cada vez mais intenso. Mas eu ia falar do pão. Do café e do pão de que são feitas as manhãs. Do trigo que adormece massa e amanhece dourado. Do café torrado e moído que bóia na xícara. A brisa da manhã é feita para poesia. Não há nada mais apropriado para o seu feitio. Eu te desejo todos os dias que nunca te falte o pão, o café e a poesia. E que você possa esquecer as sirenes.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Memorial

Nos últimos dias tenho estado muito nostálgica (será que eu vou morrer?) e tenho sido presenteada pela falha memória por lembranças profundas. Profundas no sentido de intensas, cheias de sentimentos. Por vezes são meros detalhes, situações aparentemente sem grande importância, mas que me tomam, cheias de símbolos. Estes dias lembrei de quando mudamos, meus pais, meu irmão e eu para nosso apartamento num condomínio desses enormes, cheios de prédios, lá em Candeias. Lembro de cada metro quadrado do apartamento (que na minha memória parecia bem maior do que é de fato), da brisa do mar (que não dava pra ver, na verdade era bem distante), dos sábados em que meu pai embalava as nossas manhãs com Chico ou Vinícius na sua radiola Philips (que nesse tempo, além do vinil já era apta para tocar cd, além de rádio e fita). Esses dias li um conto de Lucia Berlin que custo recordar, mas que dizia assim "uma casa cheirando a sopa as seis da noite é um lar" e de imediato recordei as mãos de minha mãe e a forma como ela cortava cenouras, batatas e chuchus, diante da televisão antes de colocar a sopa no fogo, e da forma como esse cheiro quando incensa minha casa hoje me retoma sua imagem como se fosse um abraço. Não admito que me digam que sopa não é janta. Outro dia enquanto cortava mamão revivi o modo que ela me sentava na soleira da porta que dava para o quintal e me apresentava um prato com mamão cortadinho com açúcar por cima, e de que talvez essa seja a memória infantil mais doce que tenha  guardado dos primeiros anos de vida. Mergulhei também no frio que senti na barriga quando meu pai me levou pra fazer um teste no Colégio Atual, eu ia cursar terceira série do ensino fundamental e já conseguia ser terrível em matemática. Mas fui admitida, com ressalvas em exatas, para estudar no colégio que seria o meu lugar no mundo durante muitos anos. Dali, eu guardo muitas memórias e trago até hoje as melhores amigas -irmãs que alguém poderia ter. De repente, pequenas recordações e gestos tornaram-se verdadeiras jóias e eu gostaria de guardá-las, como num baú, e lamento ter demorado tanto tempo pra começar a escrever um diário. Recordar não é só viver: é tomar as rédeas do tempo, é transpassá-lo.

terça-feira, 7 de abril de 2020

como o lençol te despe o dia


descubra-me 
como o lençol te despe o dia
cubra-me 
do teu vapor como se fosse pele minha
os raios rasgando a neblina
bordando de luz
o fulgor que escorre
entre pernas e pelos
arrepiando o próprio sol
de seu flamejar
em minúcias e espaços de tempo
sopros e brisas
versos e ancas
beija-me os olhos
como quem lambe o pisar delicado
das pontas dos pés
desse samba em meu peito.



Patti Smith & Robert Mapplethorpe - Reprodução